segunda-feira, 6 de outubro de 2014

ANTISSEMITISMO E NACIONAL-SOCIALISMO (e Parte IV)

Moishe Postone

O antissemitismo moderno é, portanto, umha forma particularmente perniciosa do fetiche. O seu poder, e o perigo que representa, acha-se em que propõe umha visom do mundo que explica e dá forma a certos tipos de insatisfaçom anticapitalista que deixam o capitalismo incólume, ao atacar as personificações desta forma social. O antissemitismo, assim entendido, permite-nos apreender um momento essencial do nazismo como movimento anticapitalista reduzido, um movimento caracterizado polo ódio ao abstrato, pola hipostasiaçom do concreto existente e por umha missom resoluta e impiedosa, mas nom necessariamente animada polo ódio: libertar o mundo da fonte de todo o mal.

O extermínio da judiaria europeia mostra que é demasiado simplista definir o nazismo como um movimento de massas com elementos anticapitalistas que deixaria cair essa pele, o mais tardar, em 1934 (Röhm Putsch) (13), umha vez alcançado o seu objetivo de conquistar o poder estatal. Em primeiro lugar, as formas de pensamento ideológicas nom som simples manipulações conscientes. Em segundo lugar, esta conceçom nom compreende a essência do "anticapitalismo" nazi, o grau em que estava intrinsecamente ligado a umha visom antissemita do mundo. Auschwitz ilustra essa ligaçom. É certo que o "anticapitalismo" concreto e plebeu de mais das SA foi eliminado em 1934; o mesmo nom sucedeu, contodo, com o impulso antissemita, o "conhecimento" de que a fonte de todo o mal era o abstrato, o Judeu.

A fábrica capitalista é um local onde se produz valor, algo que "infelizmente" deve tomar a forma dumha produçom de bens, de valores de uso. O concreto é produzido enquanto suporte necessário do abstrato. Os campos de extermínio nom eram umha versom terrível dessa fábrica, mas, ao invés, devem ser vistos como a sua negaçom grotesca, ariana, "anticapitalista". Auschwitz era umha fábrica para "destruir o valor", quer dizer, para destruir as personificações do abstrato. A sua organizaçom correspondia a um processo industrial diabólico cujo fim era "libertar" o concreto do abstrato. O primeiro passo para conseguir este fim consistiu em desumanizar os Judeus, isto é, tirar deles a "máscara" de humanidade, de especificidade qualitativa, e revelar os Judeus como aquilo que "realmente som": sombras, cifras e abstrações numéricas. O segundo passo consistiu em exterminar essa abstraçom, transformá-la em fumo, tentando durante o processo despojá-la dos traços remanescentes do "valor de uso" material e concreto: vestimento, ouro, cabelo e sabom.

É Auschwitz, e nom a tomada polos nazis do poder em 1933, foi a verdadeira "revoluçom alemã", a verdadeira tentativa de "derrubar" nom apenas a ordem politica, mas a formaçom social existente. Este ato devia salvar o mundo da tirania do abstrato. Durante este processo, os nazis "libertaram-se" da humanidade.

Os nazis perderam a guerra contra a URSS, os Estados Unidos e a Grã Bretanha. Eles ganharam a sua guerra, a sua "revoluçom" contra os Judeus da Europa. Eles nom apenas conseguiram assassinar seis milhões de crianças, mulheres e homens judeus, conseguiram dar cabo dumha cultura, umha cultura muito antiga, a do judaismo europeu. Esta cultura caracterizava-se por umha tradiçom que incorporava umha tensom complicada entre a particularidade e a universalidade. Esta tensom interna era duplicada numha tensom externa, que caracterizava o relacionamento dos Judeus com o ambiente cristão circundante. Os Judeus nunca formaram umha parte completamente integrante das sociedades em que viviam, nem viveram nunca completamente aparte dessas sociedades. Os resultados desta situaçom foram frequentemente desastrosos para os Judeus. Por vezes revelaram-se frutuosos. Este campo de tensom sedimentou-se na maioria dos indivíduos judeus após a sua emancipaçom. A derradeira resoluçom desta tensom entre particular e universal é, na tradiçom judaica, umha funçom do tempo, da história, da vinda do Messias. Talvez, contodo, em face da secularizaçom e assimilaçom, os Judeus europeus tivessem ultrapassado essa tensom. Talvez a sua cultura tivesse desaparecido gradualmente enquanto tradiçom viva, antes dumha resoluçom entre particular e universal ser alcançada. Esta questom nunca será respondida.

(13) "Röhm Putsch", também conhecido por "Noite das Facas Longas" ou "Noite dos Longos Punhais", foi umha purga que aconteceu na Alemanha, na noite do dia 30 de junho para o dia 1 de julho de 1934, quando o Partido Nazi decidiu executar dezenas dos seus membros, a maioria dos quais pertencentes à chamada Sturmabteilung (SA), umha façom paramilitar liderada por Ernst Röhm. A ocasiom foi tambem aproveitada para perseguir comunistas e sociais-democratas, bem como conservadores olhados com desconfiança.
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Este ensaio foi publicado por Moishe Postone em 1986 (em "Germans and Jews since the Holocaust: The Changing Situatin in West Germany", edições Holmes&Meier, pp. 302-314).

Pode-se acessar a este ensaio na sua versom original em inglês ou na sua traduçom para o francês. Também se pode aceder à versom em português (traduçom de Nuno Miguel Machado).

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